quarta-feira, 18 de maio de 2016

Variações em torno do conceito de percepção


E a gente muda de dentro prá fora
Sem perceber


Sem perceber – Música Em Família


Algumas coisas são difíceis de entender, ainda mais de explicar. Nessa medida qualquer tentativa de defini-las é minimamente temerária. Assim acontece com a percepção, cujo significado parece evidente, pois termo de uso corrente no linguajar cotidiano, mas que tem apenas aparência de evidente. “É. Eu percebi”. “Nossa! Você não percebeu”. Eis dois empregos comuns. Mas, afinal, o que se pretende dizer com isso? O desejo deste despretensioso exercício de pensar Psicologia é esboçar algumas especulações sobre o tema.

Percepção é um saber, e isso está implícito nas expressões “eu percebi” e “você não percebeu”, cuja equivalência pode ser “eu sei” e “você não soube”. Não se fala aqui de um saber sistemático e construído a partir de informações extraídas de uma determinada área de conhecimento, mas de um saber “dado”, e sem mediação de elaboração lógica, teórica e metodológica. Creio que essa vivência da percepção como saber espontâneo é de reconhecimento de todos, pois sempre às voltas com esse saber, e que serve de guia, de referência para boa parte de nossas ações.

O reconhecimento dessa forma de saber conflita com o cartesianismo tão enraizado entre nós, e manifesto pelo cogito, ergo sum – penso, logo existo. A existência como produto do pensamento? Parece-me que não. A constituição e expressão da percepção indica outra direção: sum, ergo cogito, isto é, existo, logo penso. Mesmo que não estejamos aqui falando em pensamento como elaboração intelectual do espírito, a existência contém os ingredientes todos da matriz da intelectualidade, assim como da sensibilidade e das emoções. Nessa medida, o existir precede o cogito, como tudo o mais que permitirá ao homem o exercício do saber, e de qualquer forma de saber. Afinal, necessário lembrar que a sensibilidade também é um saber, assim como as emoções, e que surgiram ao mesmo tempo do existir - a raiva, o medo, a surpresa, o nojo, a alegria e a tristeza -, cuja existência Charles Darwin identificou no homem independente de sua cultura.1

Nascemos dotados de cérebro e de todo um sistema nervoso, de ossos e de músculos que permitem nossa mobilidade e manipulação de coisas, de órgãos dos sentidos pelos quais tomamos impressões sensíveis do mundo exterior e interior, e de órgãos de fonação que fazem de nós seres falantes. Minimamente a partir dessa estrutura vamos estabelecendo vivências do, no e com o mundo, de nós, e de nós no e com o mundo. Do resultado dessas vivências a modificação continuada de nossa estrutura primária e disso a edificação de estruturas cada vez mais complexas, superiores, e que fará de nós o que com vaidade denominamos de seres pensantes, reflexionantes, imaginativos, etc. Bem, não é o que mais se encontra, mas a existência de alguns humanos com a força dessas qualidades permite à espécie reclamar tal status como qualidade da espécie.

Que o homem se faz homem por meio de seu desenvolvimento parece claro, como claro parece que só é possível desenvolver o que já existe para ser desenvolvido, de onde o pressuposto da estrutura. Também parece claro que o processo de hominização se faz em ambientes socializantes, isto é, onde ocorrem relações com outros homens, onde interagem uns com os outros em esforços contínuos para formatar o humano, dar-lhe forma de humanidade, inclusive pela partilha de elementos de percepção, situação e condição que também antecedem à existência.

Esse processo, entretanto, não ocorre como se fossemos um caldeirão em que se prepara uma sopa pela adição de ingredientes. A existência é o fenômeno que processa ao mesmo tempo em que se processa nessa alquimia. A quintessência transforma ao mesmo tempo em que é transformada, de onde preferir o conceito de vivência ao de experiência. Experiência, me parece, é um termo adequado quando se fala em conhecimento da natureza, que começa pela experiência e permanece na experiência. Contém uma mecânica. Vivência é uma “experiência”, mas do próprio viver.

Nada passa pela cognição que não passe também pelos sentidos, e nada passa pelos sentidos sem que disso resulte alguma cognição. Tudo se transforma em saber, em cognição afetiva, em memória, mas igualmente em memória afetiva. Isso se faz verdadeiro até mesmo para realidades que só encontram expressão no imaginário, e em meio a emoções sublimadas, isto é, tornadas sublimes, pois existentes apenas no plano da idealidade, e sem correspondência nas empiricidades. É nesse burburinho de vivências que surge a razão. Não para estabelecer a glória da lógica como gostam de imaginar os racionalistas, mas para a glória das racionalizações – no sentido freudiano -, isto é, para o escapismo de atribuir motivos, razões, argumentos ao que só podem se legitimar pelas palavras, pelos silogismos, uma vez que sem correspondência na matriz fundamental do existir. Mesmo assim, idealizadas ou não, sublimadas ou não, palavras incorporam-se ao amálgama do saber, desse saber especial de ordem difusa e na maior parte das vezes inconsciente, a que se dá o nome de percepção.

Perceber é apreender totalidades, mas vivenciadas na forma de uma síntese. É a manifestação totalizada da existência diante de a uma determinada situação e na forma de um saber imediato. É o mais primitivo e o mais conservador de todos os saberes. Em indivíduos onde se aprimorou e se refinou a vida – intelectual, sensitiva, emocional e ativa –, entretanto, a percepção tem a possibilidade de vir a ser uma elevadíssima forma de saber.

Surge aqui uma dúvida. Ao falar da existência de mim, de um processo interior dessa existência; da existência do mundo, de uma existência anterior e independente de mim; e de minha existência no mundo, isto é, de um mundo para mim, em qual dessas três posições se encontra a fonte do saber – do caráter de realidade, de verdade e de certeza -, da percepção? Em mim, no mundo ou no mundo para mim? A Gestalt nos ensinou algo interessante nessa direção. Que o comportamento se dá ao mesmo tempo em dois meios: um o meio geográfico, topográfico, o locus de manifestação dos comportamentos; outro o meio comportamental, ontológico, o interior dinâmico onde os comportamentos se elaboram. Nessa medida, a fonte da percepção pode estar no locus ou no ser.

É nesse duplo estar (estar em mim e estar no mundo) que se desenrola o drama da existência. Não sendo simulacro uma de outra, onde está a realidade: a do comportamento no meio geográfico ou a do comportamento no meio comportamental? Não sendo simulacro uma de outra, onde está a verdade: a vivenciada no meio geográfico ou a vivenciada no meio comportamental? Não será diferente com a certeza.

Pois bem: a fonte desse saber está em mim, no ser, pois se trata de realidade fenomenal, de verdade fenomenal, de certeza fenomenal, isto é, de realidade, verdade e certeza existidas como tal. Não há nenhuma outra, e nisso reside a realidade, a verdade e certeza das percepções.

Ao que parece assim também ocorre com as crenças, e talvez principalmente com elas, pois igualmente vertidas em percepções. Quanto maior a inverossimilhança da crença maior parece o apego à convicção de sua condição de realidade, de verdade e de certeza, e talvez por dois motivos: 1) o saber produto de crença é mais fácil de alcançar do que o saber produto de conhecimento elaborado e 2) a dúvida é a inimiga da crença. Apenas pessoas elaboradas convivem e se sentem bem com dúvidas, pois delas geram novos conhecimentos. Simplórios precisam de certezas.

Esse universo do imaginário habita a existência, de onde migra para as percepções. Eis os delirantes como exemplo, pois delírios são vividos intensamente “como se” racionais, naturais, reais, verdadeiros e dotados de verdade fossem. Com ou sem delírio percepção é uma síntese, uma redução fenomenológica, isto é, condição na qual informações, mensagens que chegam pelos sentidos são transformadas pela vivência em significados, em existência dotada de significados, e na esfera do ser. 

Observe à esquerda as famosas retas de Müller-Lyer, e nelas uma ilusão de ótica. As linhas centrais são idênticas, mas os ângulos invertidos em suas extremidades geram a
impressão que elas, as linhas, têm diferentes comprimentos. Essas retas demonstram que nem sempre há correspondência entre o que é visto e o que é notado. As ilusões, porém, são mais do que enganos, pois percebidas como expressão de realidade e de verdade. O que importa nisto, entretanto, é constatar que os olhos podem ser “enganados”, e esse reconhecimento põe por terra a convicção tipicamente realista das relações correspondentes dos sentidos com o percebido. A ilusão estará sempre presente como possibilidade na relação entre a sensação e o sentido, assim como entre o perceber e o percebido. Adoçantes artificiais geram o sabor doce dos açucares, mas não são açucares. Sabe-se da existência de drogas lícitas e ilícitas que alteram sensações e percepções. Da produção de ilusões vivem os mágicos e por muitos séculos. Psicólogos sociais descobriram, em experimento, que se em um grupo de pessoas todos afirmam algum absurdo (que um cubo azul escuro é branco, por exemplo), uma única pessoa desavisada da situação experimental, quando introduzida no grupo começa por discordar da maioria, mas acaba com ela concordando depois de certo tempo. Chamam a esse fenômeno de coerção de grupo. Minorias cedem e recuam diante de percepção de maiorias, e o fazem com a convicção de que estão sendo enganadas por suas sensações e percepções. Há quem sinta culpa por não compartilhar de uma mesma impressão da maioria. Afinal, como descrer no que todos creem? 

Muito conhecido é o Vaso de Rubin exposto na figura ao lado. No jogo de figura e fundo a percepção de um vaso ou de dois perfis voltados de frente um para outro. Algumas
pessoas percebem apenas uma das figuras, e não percebem a outra nem com muito esforço. Algumas percebem as duas, e ainda outras não percebem nenhuma delas. Ora, se o desenho é o mesmo, contém uma mesma “realidade”, como é possível que diferentes pessoas possam nele perceber diferentes imagens? Isso acontece porque a percepção é totalizadora. Não há percepção “por partes”, pois a própria pessoa é uma totalidade, apreende as coisas enquanto totalidade, e existe enquanto uma totalidade. Note-se que neste caso não falamos em ilusão de ótica, mas em peculiaridades da percepção. Não há, portanto, nenhuma realidade e verdade no cotidiano sensível, por mais regulares que sejam seus elementos, seus fenômenos, exceto na realidade e verdade apreendidas pela percepção, e dessa maneira existidas fenomenalmente enquanto realidade e verdade. Também é assim com palavras que expressem abstrações, mas principalmente imagens, isto é, produto de recorrência ao imaginário. 

O que dizer, então, de imagens (diante dos olhos) mais complexas que se apresentam para a percepção, como A Metamorfose, ao lado, de autoria do artista plástico
Octavio Ocampo? Uma mulher ou apenas pequenos ramos com flores fechadas e abertas, além de uma pequena borboleta? É tudo: o rosto de mulher, pequenos ramos, flores abertas, flores em botão e uma pequena borboleta. Como, porém, a percepção é sempre síntese redutora, terá que dirigir-se a uma “distância” de cada vez, como se fosse um zooma fim de focar cada elemento enquanto totalidade, ou a totalidade como elemento. Também aqui, e mais uma vez, a mesma pergunta para os realistas e defensores do reino da verdade: qual a realidade e a verdade da obra de Ocampo? A obra mesma, e com esses elementos que ora fazem “parecer” uma coisa e ora outra. A realidade é aquilo que a percepção toma por realidade, assim como a verdade. Serão capazes de jurar os que na imagem enxergam apenas a mulher que não existem os pequenos ramos, as flores abertas e em botão, e menos ainda a borboleta. Talvez digam mais: que enxergam não apenas uma mulher, mas uma bela mulher jovem. Também é assim no cotidiano, pois sempre em jogo elementos de emoção em meio a tudo que é percebido. Um saber dotado de emoção, e muitas vezes uma emoção tornada saber, isto é, uma percepção.

Se alguém tem alguma dúvida quanto a isso, que tente convencer alguns tipos de fóbicos que a feirinha dominical que ocorre na Praça da República seja um ambiente romântico, descontraído e generoso. É assustadora por se realizar em local aberto (agorafobia), repleta de bêbados e de mendigos (hobofobia), tem micróbios e sujeira (misofobia), tem multidão (oclofobia), ladrões (cleptofobia) e até mesmo demônios (demonofobia). Que tal a tentativa de convencer um paranoico de que os bêbados da praça não são todos agentes de espionagem nacional e internacional e que ali foram plantados para seguir seus passos? Que tente convencer os assaltantes e os estelionatários de que as pessoas que ali se encontram são fontes de relações de simpatia e não incautos para aplicação de golpes e de investidas. O que dizer, então, das percepções repletas de delírios policialescos dos adeptos das teorias conspiratórias? O perigoso inimigo se oculta em cada engraxate, em cada noia (usuário de crack), em cada travesti, em cada pedinte e em cada sem teto. O que dizer de um caipira maçom fazendo aqueles sinais secretos – e que de secretos nada mais têm - para ver se com isso atrai outro maçom, urbano, e que possa livrá-lo do pavor diante da diversidade de coisas e pessoas desconhecidas.

Quem sabe o vendedor de artesanato made in China volte para casa de bolso cheio, pois os analfabetos enxergaram naquilo arte e compraram todas as quinquilharias. Quem sabe o artista tenha voltado para casa sem dinheiro para pagar o jantar, uma vez que os analfabetos não souberam apreciar e nem reconhecer o valor de suas obras. Quem sabe a prostituta tenha tido sorte e conquistado alguns clientes. Quem sabe o traficante tenha passado mais um domingo sem despertar suspeita da polícia. Quem sabe...

Bem, creio que os exemplos bastam para a formulação de uma pergunta necessária a guisa de conclusão: de quantas Praças da República estamos falando? Do ponto de vista geográfico, topográfico, de uma apenas uma. Porém, do ponto de vista comportamental, de tantas quantas as existências nela presentes. Quantas são as realidades e verdades dessa praça? Tantas quantas as vivenciadas como realidades e verdades pelas existências nela presentes. Essa praça é o que as percepções fazem com que ela seja. Há nela riscos? Sim, mas possivelmente menos do que a ela emprestados pelos fóbicos, por aqueles que dentre as emoções todas têm o medo como freio maior de suas ações e até de suas fantasias. Há espiões? Talvez um ou outro, mas seguramente sem nenhum interesse no insignificante paranoico, embora ele goste de perceber a si mesmo como importante, muito importante.

De qualquer modo, não indague essas pessoas sobre os alertas de suas percepções, pois elas passarão horas expondo razões, isto é, gerando racionalizações para legitimar as próprias emoções, de modo a travestir com alguma inteligibilidade – e isso onde há algum estofo para tal -, o saber chamado de percepção.

Em defesa do método descritivo da Fenomenologia, cujo pano de fundo está o tempo todo presente neste texto, como discordar de Maurice Merleau-Ponty ao dizer que o interesse de conhecimento do mundo “é saber como ele se processa em cada pessoa”. E há quem acredite que informação seja sinônimo de conhecimento, da mesma forma que acredita que expressar conhecimentos como se fossem informações, seja sinônimo de conhecer.

Nossas percepções são reflexos de nós mesmos, pois expressam sínteses redutoras de nosso existir. Mundo, portanto, é o que existe dentro de cada um de nós. Talvez não seja exagero dizer que filosofar consista em rever visões de mundo, em rever percepções. Talvez seja também isso o que pode haver de melhor em ação pedagógica e terapêutica, desde que dotada de profundidade digna de perspectiva filosófica. Talvez! De qualquer forma, não seria tarefa para qualquer pedagogo e para qualquer terapeuta.


 Rogério Centofanti
São Paulo, maio de 2016