sábado, 6 de agosto de 2016

Aspectos psicológicos da mentalidade conspiratória



Vão entrar na sua mente mesmo que você evite
A grande estratégia do mal é você achar que ele não existe


Teoria da Conspiração – MC Funkero


Teoria do complô me interessa na condição de capítulo de Psicologia Política, por mim entendida como o estudo do comportamento político, isto é, o estudo de pensamentos, sentimentos e ações de natureza política, e neste caso no comportamento político do indivíduo envolvido com teoria conspiratória. Não me agrada a definição corrente de Psicologia Política como atividade interdisciplinar. No caso da teoria do complô, entendo que aos psicólogos está dada a tarefa de análise da mentalidade de quem se envolve em produção ou consumo desse tipo de teoria. Para dizer de outra maneira, interessa o que passa pelos pensamentos e sentimentos dos adeptos do conspiracionismo.

Um bom retrato da mentalidade complotista me parece o de Michel Carlier:

A História não é mais o campo de atrito de forças antagônicas. Existe, ao contrário, uma ordem natural, e sua perturbação é o resultado de um complô metódico conduzido por forças ocultas guiadas por uma consciência demoníaca. O maestro clandestino pode ter muitas faces, que dão lugar a mitos que se entrecruzam através de obsessões individuais. Segundo as necessidades da causa, o demônio será judeu, franco-maçom, capitalista, sinarquista, aristocrata, papista ou jesuíta.

A teoria do complô se sustenta, portanto, sobre a ideia que o equilíbrio das relações políticas, econômicas e sociais está o tempo todo sendo ameaçado pelas ações de forças ocultas que metodicamente desestabilizam a ordem natural das relações, isto é, desestabilizam um sistema ordenado que por meio de leis naturais ou sobrenaturais mantém estável o convívio entre pessoas e povos. Trata-se de pensar o corpo social como analogia ao corpo biológico, isto é, sadio enquanto algum distúrbio não prejudica o equilíbrio de sua ordem funcional.

Esse arranjo conceitual certamente não passa pela consciência da maioria dos conspiracionistas, embora um mesmo pressuposto esteja invariavelmente presente em todos eles: a esperança com base na crença que o mundo será melhor se as forças que geram tensão forem eliminadas, assim como as doenças de um organismo. De parte dos coletivistas pela eliminação da diferença entre classes sociais, de parte dos individualistas pela eliminação da interferência do Estado nas relações econômicas, da parte de religiosos pela eliminação dos ímpios e infiéis, e assim sucessivamente, sempre de acordo com as “necessidades da causa”, de que fala Carlier, lembrando que não são as mesmas. Inconscientemente eles pretendem o fim da história pela erradicação dos antagonismos.

A notar em jogo a presença de crenças ou de conjunto de crenças. O conspiracionista acredita na existência de forças ocultas que manipulam a vida política, econômica e social, enquanto o religioso na existência de forças malignas que conspiram contra a vontade divina.  Crenças.

Isso, porém, não reduz a influência que elas, crenças, exercem sobre pessoas e sociedades, pois opiniões formam-se sobre crenças, e como delas deriva a concepção da vida, “o nosso modo de proceder e, por conseguinte, a maior parte dos acontecimentos da história”. Como desdizer essa afirmação de Gustave Le Bon, já em 1911, quando do surgimento das sociedades de massa? A crença, dirá Le Bon, “se me afigura ser, na realidade, o principal fator da história”. Hoje, um século depois, é ainda mais, pois é pelo embate de crenças que se a divide a chamada opinião pública, em tempo que opiniões pesam como se tivessem equivalência com conhecimentos. Já em 1911 dizia Le Bon que “as únicas verdadeiras revoluções são as que despertam as crenças fundamentais de um povo”. De fato!

Também no caso do conspiracionismo, opiniões e crenças ganham caráter de ideologia, compreendida como filtro de realidade.  Afinal, dirá Alain de Benoist, “para a espécie humana, os fatos brutos são por si mesmos desprovidos de sentido”. Nessa medida, e sendo o homem um animal hermenêutico, o que faz o conspiracionista, a exemplo de qualquer outro crente, é apenas manifestar a “necessidade de interpretar os fatos em função de uma trama que possa lhe dar sentido”. É, portanto, a partir do non sense que se coloca diante de seus olhos que o conspiracionista irá literalmente interpretar o que concebe como caos na condição de produto intencionalmente orquestrado por alguma força oculta, e criar a trama que possa lhe emprestar algum sentido, alguma racionalidade, e nela apontar para o elemento desagregador da ordem natural: judeu, franco-maçom, capitalista, sinarquista, aristocrata, papista, jesuíta, etc. Uma versão correlata aos puristas na busca das bruxas diabólicas de Salém. Aliás, é nítido um quantum de purismo e de moralismo nas motivações conspiracionistas, e que tanto os aproxima dos religiosos. Também neste caso, no dizer genérico de Benoist sobre ideologia, “ela é útil e onipresente”. Como a racionalização do non sense não afeta a permanência desse mesmo non sense, fica dada a realimentação, no conspiracionista, da utilidade do mesmo aparato mental, inclusive no apontar do mesmo elemento desagregador na condição de corpo estranho, de doença. Trata-se de uma cobra que morde a própria cauda.  Instigante, no caso do conspiracionista, é que ele inicia e mantém suas crenças justamente por duvidar das crenças e das opiniões com as quais os outros se conformam. Tem todo o tempo a sensação – em muitos casos a mais plena certeza – de estar sendo enganado, iludido, passado para trás, de onde, na maioria das vezes, a presença de suas obsessões pessoais no apontamento desta ou daquela força manipuladora. Judeus têm sido os mais cotados, mas é necessário lembrar que os mais antigos, e ainda presentes. Com a proletarização da Maçonaria foi-se a crença de que tenha algum poder excepcional, de onde a relação entre o fator secreto ou muito discreto de grupo ou seita e a correspondência de poder no imaginário do conspiracionista, na maior parte das vezes muito fértil. A força conspiradora tem por característica o agrupamento de pessoas que se segregam das demais. Grupos dos quais ele não pode fazer parte por desejo próprio, e que não têm a porta aberta para visitação fácil como se fossem museu. É muito mais o desconhecimento e o distanciamento dos comuns que faz desses grupos objeto de especulação, fantasia e até mesmo ódio de conspiracionistas, do que qualquer outra coisa. A rigor nada sabem desses grupos exceto o que ouvem, do que eventualmente leem, mas o suficiente para torná-los alvo de profundos sentimentos hostis. Bem, essa é a matriz de qualquer preconceito.

Se o saber da ciência é igualmente uma crença na possibilidade de melhor caminho ao conhecimento pela metodização com o qual é constituído, o que dizer do saber da crença, tomado desde o início como um conhecimento com status de certeza? O conspiracionista não sabe, no sentido do saber científico, mas tem convicção na certeza de suas crenças. Nesse sentido torna-se igual aos religiosos na construção e condução de pensamentos, sentimentos e ações com base em suas crenças, e por consequência no sustento de suas opiniões. No dizer de Le Bon “só o nome da convicção se transforma: a fé muda de objeto, mas nunca morre”.  

O adepto da teoria do complô poderá mudar o nome de sua convicção, do objeto de seu ódio, mas não a convicção e a fé de que dele depende a vigilância sobre as forças do mal que conspiram contra a harmonia nas relações entre os homens.  O adepto da teoria do complô imagina-se como soldado do bem na luta contra o mal. É um vingador, de certa forma um herói, um caçador de demônios, exatamente como um religioso, de onde a mesma origem e forma de constituição de crenças. Iguais no maniqueísmo, iguais no desconforto diante da dúvida e incapazes de conviver com antagonismos. A dúvida é inimiga da fé, motivo de ser por eles afastada a qualquer custo, e o antagonismo produto da ação presente de forças do mal, motivo de ser denunciado e combatido. Também são iguais no mesmo hiper determinismo presente em todas as suas percepções. Para conspiracionista e religiosos não conta o acaso, o imponderável. Tudo, absolutamente tudo tem causa. Afinal, se para o religioso nenhuma folha se move a não ser pela vontade de um deus, esse ente é senhor e razão maior de todos os acontecimentos. Nessa medida, e eis esse deus presente e visível o tempo todo, até pelo simples estar ai da natureza, assim como o demônio em toda e qualquer disfunção. Não difere na lógica da teoria do complô. Onde há paz e equilíbrio impera a ordem natural, e na desordem a prova da presença da força oculta do mal. Neste caso o bem é um estado natural, e o mal a ação de uma força maligna. Porém, como lembrado por Le Bon,

A fé em um dogma qualquer é, sem dúvida, de um modo geral, apenas uma ilusão. Cumpre, contudo, não a desdenhar. Graças à sua mágica, o irreal torna-se mais forte do que o real. Uma crença aceita dá a um povo uma comunhão de pensamentos de que se originam a sua unidade e sua força.  

Também unidade e força a um grupo de pessoas, que costuma ser o caso de religiosos e militantes políticos, dentre eles os conspiracionistas. Aliás, não apenas comunhão de pensamentos, mas também de sentimentos e emoções.

 A rigidez do determinismo que não tolera nem mesmo a hipótese de alguma margem de acaso faz de religiosos e de conspiracionistas irmãos no dogmatismo extremo de suas crenças tornadas dogmas, e abraçados a uma compulsividade que beira a obsessão. O bem está em toda parte, assim como o mal, e essa condição lhes parece tão evidente que não conseguem entender como os demais não percebem como eles.  Ainda que um atribua ao bem e ao mal uma condição de natureza, e o outro de sobre natureza, eis o maniqueísmo no centro do sentido da vida individual e coletiva. Tudo, absolutamente tudo depende da vontade de forças – naturais ou não – que não se relevam senão à percepção desenvolvida de iniciados, ou seja, deles.  O pressuposto de base natural dos conspiracionistas, entretanto, faz com que mantenham laços de identidade com os racionalistas, de modo que formem um grupo sui generis: têm a matriz emocional de religiosos e políticos, ao tempo reclamam para si a matriz lógica de cientistas. Vivem, portanto, movidos por crenças, mas em boa medida tornadas lógicas, digamos assim, por meio de racionalizações. Afinal, o mundo apreendido pelos sentidos nada mais é do que ilusão e, nessa medida, inalcançável pelo mero empirismo, de onde a necessidade de dogmas que sirvam como guia para alcance da dimensão do real e da verdade, duas instâncias que não ousam nem mesmo colocar sob alguma dúvida, ainda que apenas metódica.  São fundamentalistas da defesa de que conhecem a realidade e a verdade.

Muito disso está na criação da arte ficcionista, e que sempre faz sucesso pelo forte magnetismo sobre o imaginário afetivo das pessoas. É um clichê a presença de forças e poderes que estão distantes e acima da vida limitada da pessoa comum. Para as mentalidades místicas, dirá Le Bon, embora me pareça verdadeiro também para as mentalidades mágicas, “o encadeamento das coisas não oferece nenhum regularidade: depende de seres ou de forças superiores, cujas vontades nos são simplesmente impostas”. Esse é o mundo do conspiracionista, de certa forma muito similar àquele do filme Matrix, pois composto por duas realidades paralelas. Uma terrível sem encantos, e outra ilusória, onde as pessoas vivem movidas por sensações de beleza, conforto, segurança e prazer. Essa é a lógica: há um profundo antagonismo, mas ele é disfarçado, dissimulado pelo engano dos sentidos, pela manipulação de forças que criam a ilusão que vivemos dentro de uma ordem natural. Não muito diferente com o enredo do filme Homens de Preto, onde a Terra está em parte tomada no cotidiano por seres extraterrestres, mas visíveis apenas pelos agentes especiais do governo – os homens de preto – e que apagam a memória de terráqueos que casualmente tomem conhecimento dos alienígenas. A literatura de ficção está repleta de histórias similares.

Seja como for, sempre a ideia que o mundo não é transparente, e que forças terríveis atuam o tempo todo se opondo ao curso da ordem natural, ou criando cortinas de fumaça que impedem que as pessoas percebam a perturbação dessa ordem. Sempre manipulações, sempre para o mal, de modo que todos se comportem como marionetes, na maioria das vezes pelos cordéis de opiniões e crenças comandadas pelos conspiradores. Como diz Alain de Benoist, “a conspiração engendra os acontecimentos, mas não é afetada por nenhum deles. Ela explica a história, mas ela própria se mantém fora da história”. Nessa medida, os conspiracionistas escrevem uma história paralela à história dos historiadores, exatamente como no filme Matrix ao qual já se fez referência. Mais do que isso, constroem uma transhistoricidade. Como observa Benoist, nas referências binárias de conspiradores e conspiracionistas, o complô “existe em todos os tempos como em todos os lugares: a história manipulada pelos conspiradores não é outra coisa que a realização de um projeto elaborado fora dela”. Esse mecanismo permite a criação de mitos, e alguns deles alimentam-se dessas lendas em torno de seus nomes. A maçonaria, por exemplo, talvez a força conspiradora mais apontada depois dos judeus, que no dizer de Benoist, ao atribui a si própria “origens fabulosas que remontam a construção do Templo de Salomão, quando não a Adão e Eva, pode, indiretamente, favorecer a ideia que o complô do qual ela seria o motor atravessou os século...”. Interessante que mesmo na condição de conspiradora, de vilã, portanto, atrai membros movidos pelo desejo de fazer parte de alguma coisa que tenha tradição e poder, ao menos na imaginação dessas pessoas. Têm necessidade de importância e acreditam que mesmo plebeus possam com isso reclamar para si um mínimo de tradição. Nessa medida, teorias do complô atraem pessoas para ambos os lados – heróis e vilões nessa verdadeira transhistoricidade do maniqueísmo -, alimentada por lendas bem mais do que por fatos.

- Ah, poderá dizer o leitor, mas complôs existem.

Claro que sim. Não, porém, na forma imaginária de conceber o mundo enquanto um permanente manejo de cordéis sob a orquestração intencional e sistemática de alguma poderosa força oculta, e onde todo e qualquer acontecimento simultâneo pode ser reinterpretado em relação a sua causalidade.  Afinal, diz Besnoit, “a teoria conspiratória é, pois, antes de tudo uma teoria antagonista, verdadeiramente negadora do acaso e do aleatório”. Como negar que há nela “recurso a formas patológicas, delirantes do pensamento analógico”? O complô está para a mente conspiracionista como a doença para a mente hipocondríaca. Torna-se uma compulsão. Afinal, tudo é complô, e às forças conspiratórias atribuídos poderes divinos: onisciência, onipresença e onipotência. Eis o grande demônio agindo a partir das trevas, no comando do mal, e sabido apenas pelas mentes astutas dos conspiracionistas. Afora eles, e todos os demais vivem no plano ilusório de uma realidade tornada virtual. Bem, se isso não for um delírio, parece mais justo retirar esse rótulo de todas as pessoas com tal diagnóstico.

Não se sabe como isso começa, mas certamente se sabe como pode terminar: em paranoia persecutória, um transtorno de personalidade marcado pela desconfiança. Afinal, se a pessoa “sabe” da existência e das ações de uma força tão poderosa, isso certamente para ela mesma representa um imenso perigo, de onde a possibilidade de entrar em planos de neutralização, e que vão de medidas persecutórias na vida profissional, social e familiar até o extermínio. São muitos os casos similares na literatura ficcional, e conhecido o destino dos que “sabem demais”. Como toda paranoia, porém, vivenciada pelo transtornado com status de realidade. Está o tempo todo sendo vigiado, seguido, fotografado, gravado, de onde todo cuidado com quem mantém relacionamento, com os conteúdos de suas falas, e atenção redobrada com tudo e com todos. Afinal, tudo esconde um significado. Até mesmo um insuspeito “bom dia”. Por que a pessoa cumprimentou? O que ela quis dizer com “bom dia”? Gente que se esconde. Gente que vive da desconfiança e principalmente do medo.

De qualquer forma, a pós-modernidade é um desafio para os pós-conspiracionistas.  Afinal, até os bodes expiatórios de costume, os conspiradores clássicos, parecem perdidos neste mundo novo.  Há uma nova psicologia em andamento.

Conspiradores são reacionários, sonham com o retorno à Idade de Ouro, mas sempre tendo em vista o passado sob a luz de seus próprios sonhos e valores.  Medrosos idealizam uma sociedade segura, moralistas uma sociedade regida pela moral e pelos bons costumes, individualistas por uma sociedade que garanta os direitos individuais, coletivistas por uma sociedade igualitária, e assim sucessivamente. Não há, portanto, um consenso quanto ao modelo ideal da ordem natural, mas nem mesmo essa evidência os demove da ideia do fim da História, isto é, do fim dos antagonismos.  Um novo moralismo, por exemplo, tem se instituído na sociedade atual de maneira operatória, e aparentemente sem antagonismos.

“Não há dúvida de que a moral tradicional se perde”, afirma Robert de Herte,

mas outra a substitui. A antiga moral prescrevia regras individuais de comportamento: a sociedade se portaria melhor se os indivíduos que a compõem se comportassem bem. A nova moral quer moralizar a própria sociedade sem impor regras aos indivíduos. A antiga moral dizia às pessoas aquilo que elas deveriam fazer; a nova moral descreve aquilo que a sociedade deve se tornar. Não são mais os indivíduos que devem se conduzir de modo direito, mas é a sociedade que deve se tornar mais "justa". É que antiga moral era subordinada ao bem, enquanto a nova é subordinada ao justo. O bem realça a ética das virtudes; o justo, uma concepção de Justiça, ela mesma colorida de uma forte impregnação moral. Mesmo quando elas pretendem permanecer "neutras" quanto à escolha de valores, as sociedades modernas aderem a esta nova moral. Elas são simultaneamente ultrapermissivas e hipermorais.

Em resumo, o indivíduo pode professar a moral que bem entender desde que com os demais atenda a todos os preceitos da moralidade social. De fato, portanto, a nova moral é simultaneamente ultrapermissiva e hipermoral. Também não há como negar que o Direito vem progressivamente se rendendo a um moralismo travestido de Justiça, e com isso a proximidade do fim de sua tecnicidade. O denuncismo tornou-se prática legal e moral. Eis medidas que contentam moralistas e justiceiros, como também medrosos e coletivistas, e que não parecem cerceadoras aos olhos dos individualistas. Alguém orquestrou tudo isso? Não. São novas interpretações de velhas práticas e que aos poucos se transformam em ideologias que penetram no tecido social pelos agentes que de uma forma ou de outra vivem no limite dos antagonismos: políticos, juristas, religiosos, educadores, comunicadores, etc.

Não ocorre aos conspiracionistas que essas mudanças velozes e radicais dependem apenas umas das outras, e não de alguma orquestração. Afinal, na sociedade da imitação basta alguém lançar moda, ainda que uma ideologia, para que os demais reproduzam se notar que tem aceitação e, portanto, possibilidade de consumo. Não dá para lhes fazer crer, por exemplo, que uma nova tecnologia pode ter aplicações que alteram realidades antes inimagináveis.

Para tranquilidade dos medrosos, dos moralistas e dos coletivistas, e para desespero dos individualistas e dos transtornados de personalidade por paranoia persecutória, e eis que a Teoria Panóptica de Jeremy Bentham torna-se aplicação neste início do século XXI. Informática e telemática permitiram um grau nunca imaginado de vigilância e controle social, e pode ser ainda maior apenas com tecnologias disponíveis. Câmeras por todos os lados, monitoramento da movimentação e de hábitos de consumo de pessoas pelo uso de seus cartões de crédito e débito, assim como pelo uso de aplicativos de comunicação em celulares, além presença em redes sociais digitais, etc. Tudo isso, é claro, em nome da segurança pública.

Trata-se – dirá mais uma vez Robert de Herte -, afinal e contas, de criar um caos latente que, sem ultrapassar certo patamar, seja suficiente para inibir qualquer tentativa de reação coletiva. A mesma tática foi observada no passado contra as “classes perigosas”, com o objetivo inconfessável de eliminar os desviantes, os portadores de uma palavra discordante. Hoje, são os próprios povos que, aos olhos da Forma-Capital e das oligarquias reinantes são globalmente transformadas em “classe perigosa”. É aos povos que é preciso domesticar. Para impedi-los de elaborar projetos coletivos de emancipação e de autonomia, é bastante inspirar-lhes medo. É para isso que serve a Panóptica. “Quando não existe o martírio físico, dizia Péguy, são as almas que não conseguem mais respirar”.

Essas tecnologias foram criadas para o controle social ou os agentes do controle social fizeram uso de tecnologias disponíveis? Seguramente a segunda hipótese.  Lembrando que essas tecnologias ficarão cada vez mais baratas e disponíveis e pobres paranoicos com a conhecida mania de perseguição. Coitados também dos medrosos. Afinal, se eles podem monitorar os movimentos das forças capazes de ameaçá-los, também elas podem monitorá-los. 

Espero ter demonstrado que é fácil confundir embates de antagonistas com teorias conspiratórias, principalmente considerando a existência de antagonismos entre os próprios complotistas.  O conspiracionista é, na grande maioria das vezes, um impotente diante do fracasso de suas vontades frente a forças que fizeram valer as suas. Como de costume um absolutista inconformado, a exemplo de milhares de outros ao longo da História, atribuindo a alguma poderosa força sem face o motivo de sua derrota e de seu recuo, embora sem luta. Nem pensar em confundir com terrorista uma vez que isso é outra discussão, outra psicologia, e que nada tem a ver com esta.
Rogério Centofanti


São Paulo, agosto de 2016